quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Janelas nas medianeiras

O cinema perdoou minha longa ausência e, ontem, me deu tudo que eu precisava: ótima fotografia, introspecção do ser humano (urbano) e uma hora e meia de relax.

Nada mais pertinente com as nossas vidas interconectadas, porém solitárias, que a história do filme argentino Medianeras. Quando acordamos e a primeira coisa que solicita a pupila de nossos olhos é a luz da tela do celular, provavelmente demoraremos uma semana ou mais para encontrar as pessoas com as quais falamos tanto digitalmente. As relações epistolares, que antigamente eram uma forma de enganar o tempo e prelúdio de encontros emocionantes, hoje se encaixam de forma quase fastidiosas em nossas rotinas. 

Mariana, no filme, relembra que a promessa da era digital era de nos aproximar cada vez um pouco mais; na verdade, a seu ver, começamos a criar distâncias ainda mais acentuadas do que as reais. 

Em Medianeras, duas personagens neuróticas, fóbicas, sozinhas e de uma beleza interior infinita se desencontram de uma forma hilária na floresta de concreto que é Buenos Aires. A única brecha que quebra o muro do isolamento das "medianeiras" - laterais dos prédios que antigamente se apoiavam a outros que foram demolidos - é o ataque subversivo que os dois tem ao mesmo tempo. Como muitos fazem, eles mandam abrir ilegalmente uma parte da parede interna para construir uma janela. A busca de luz, oxigênio e vida os leva ao primeiro contato visual, através suas janelas perdidas nas alturas das medianeiras.

O filme parece não ter muitas pretensões até que nos demos conta que sua real preocupação é o contraste Eu/multidão e a problematização de ser importante ou útil em qualidade de indivíduo em comparação ao infinito. Se a existência do ser vivo for tão irrelevante, seu encontro com qualquer outra pessoa não deveria alterar o balanço da multidão. Mas a solidão à qual nosso mundo nos confina entra em nossa rotina fantasiada de relações irreais e é isso que nos dá a ilusão de que fazemos parte de um todo. Martín, no filme, encontra seu pequeno universo ao cruzar o caminho de Mariana. Isso, talvez, não faça muita diferença no balanço cósmico, mas dá um sentido relativo a nossas minúsculas existências diluídas no lapso da história do universo e nos mostra que é de coisas pequenas que precisamos para nossa felicidade passageira, assim como janelas nas medianeiras. 

'Todo lo que estás buscando', Mariana,
um pontinho na medianeira.


terça-feira, 19 de agosto de 2014

Êxtase em Cannes

Encarei a inexorável naturalidade do meu relacionamento com os filmes ganhadores de prêmios (sempre digo "por que ver?" e depois eu sempre vejo) e fui assistir à Palma de Ouro La vie d'Adele, vulgo Azul é a cor mais quente no Brasil (e em inglês). 

Adèle, garota francesa, adolescente, foi educada a planejar sua vida, profissional e amorosa. Vemos muito cedo que ela investe em ser educadora de crianças, conforme planeja desde a adolescência. Já pelo lado do coração, sua presumida "racionalidade" não a deixa seguir o caminho conforme o preestabelecido. Desde as primeiras experiências, ela repara que não existe paixão, nem sequer uma mínima emoção, ao fazer sexo, ou simplesmente sair e conversar, com um garoto da escola atraído por ela, nem com os demais.

Seu encontro, antes casual, depois planejado, com Emma, garota mais madura, lésbica publicamente assumida, a leva a expectorar aquela paixão latente. O que nos atrai da história é essa paixão sublimada, perpetrada, animal; uma paixão que, mesmo sendo sustentada pelo carinho constante de uma para a outra, transponde a relação amorosa das garotas para a perdição pura e total. As duas se mordem, se sentem, viram uma a continuação da outra, como se aquela fosse a última vez que se tocam. E, ironicamente, as últimas vezes que estão juntas, tudo fica mais frio, e nem o direito a um adeus carinhoso e sonhador é dado a Adèle, quando Emma descobre que a distância tomou conta do espaço entre as duas. Adèle implora por uma reproximação, quase nos faz acreditar que está contemplando o suicídio, mas no fim vemos que sua única solução é a aceitação e uma vida solitária.

Falar de todas as críticas que o filme recebeu não cabe aqui, são muitas mesmos, e claramente quebradas entre quem amou e quem odiou a película. Eu faço parte do grupo que achou o filme super interessante, porem sem merecer espaço na estante nobre da minha videoteca. Mas preciso dizer que não concordo muito em estigmatizar o diretor Kechiche dizendo que foi sádico e que foi desnecessário ter insistido em cenas intermináveis de sexo, pois, se pararmos para refletir sapientemente, podemos enxergar que o fio condutor, a alma do filme, o centro de gravitação das relações é a luxuria, é a doce perdição da carne. E é tudo isso que Kechiche quer passar através de sua suada (sobretudo pelas atrizes) película. Ele é um perfeccionista e sabe atrás quais meios precisa recorrer para ter um trabalho bem feito. O que eu vi me convenceu muito. Adèle e Emma (Adèle Exarchopoulos e Léa Seydoux) explodem de prazer e é exatamente isso que o diretor quer mostrar. A boca onipresente de Adèle, quando come qualquer coisa, quando se suja, quando sorri, quando dorme e respira profundamente, quando beija Emma, é objeto obsessivo de closes de Abdel Kechiche. Muito boa escolha, aliás. Sim, a intenção de Kechiche é de nos excitar e de nos mostrar o lado físico da história das duas, de nos deixar incomodados quando, por longos minutos, vemos apaixonadíssimas cenas de sexo; mas somente porque na hora do cinema estamos próximos a alguém. As atrizes também, não pouparam críticas às filmagens dizendo que Kechiche é um sádico (me lembra muito quando os atores nos bastidores de Shining disseram do Kubrick que era um maníaco, que repetia a cena da porta do banheiro só por sadismo). Óbvio é que, depois da Palma de Ouro, (pelo menos) as atrizes trocaram o adjetivo "sádico" pelo substantivo "génio" e sorridentes abraçaram o diretor que lhe deu essa cobiçada estatueta.
A boca de Adèle: êstase, sono, fome, alegria.

Em poucas, e últimas, palavras, diria que o filme não é único e imperdível, mas ele consegue desencadear uma série de emoções reprimidas, latentes no substrato animal que jaz em cada um de nós, heterossexuais, homossexuais, tímidos, extrovertidos, homens ou mulheres, e isso não é fácil de esquecer.

quarta-feira, 30 de julho de 2014

O discreto fascínio da decadência

Ontem, driblei milagrosamente o transito maluco que dita as leis no Rio em horário vespertino e consegui chegar na sala 2 do Roxy bem quando as luzes estavam perdendo intensidade para deixar o projetor nos encantar com Grande Hotel Budapeste. Sai de lá feliz. Depois de doze horas fiquei de novo com vontade de assistir!


O então fictício L'air de Panache,
hoje à venda na internet
O filme é um encanto de cores. A delicadeza das personagens nos deixa uma calma e nos inspira uma saudade de tempos que não vivemos mas, mesmo assim, imaginamos já ter visitado; talvez um dia, em nossos passados. 








Courtesan au chocolat da
 fictícia confeitaria Mendl's
Os perfumes e os sabores, que não podemos sentir, são apresentados de tal forma a entrar em nossa mente e recriar perfumes e sabores que já experimentamos na infância: um perfume da vó no vidro geométrico com borrifador e os éclairs da confeitaria Colombo. 





Apresenta uma cenografia de outdoor levemente onírica pois - ótima escolha, Wes Anderson!! - as montanhas, o teleférico, a pista de esqui e o próprio hotel, em sua versão de antiga glória em rosa, são maquetes. Isso contribui a remeter àquela sensação de falsas lembranças de criança e, também, a uma película em preto e branco colorida posteriormente, como nos melhores filmes do início do século XX. 


Até pensei que todas essas sensações fossem fruto de minha imaginação, quando descobri, com minha enorme surpresa, que o Grande Hotel Budapeste "existe" e é muito bem recomendado no Tripadvisor (vide no link)! Achei a ideia excelente! Isso só mostra como o toque de decadência romântica do filme nos envolveu profundamente.




Uma irreconhecível Tilda Swinton
O time de celebridades que trabalhou no filme nem precisa de apresentações. Mas o fato interessante é que todos eles, com exceção de Ralph Fiennes no papel do gerente do hotel e de Jude Law, o escritor, aparecem por poucos minutos, se não segundos, como é o caso de Bill Murray. Tilda Swinton, quase irreconhecível com seus olhos vidrados, ostenta uma elegância e fineza de outras épocas.





O time do Grande Hotel Budapeste
Eles fazem parte do prestígio que o Grande Hotel Budapeste representa; são pequenas grandes preciosidades que se confundem com as cortinas, os tapetes, as cerâmicas e os perfumes do glorioso e decadente lugar. 


sexta-feira, 18 de julho de 2014

Versões piores do que eu já fui

Pensei em ver por muito tempo. Finalmente consegui e essa semana vi Her, no Brasil Ela.

Preciso, antes de tudo, ressaltar o quanto sou super fã do diretor, Spike Jonze, que não só dirigiu outro filmaço de consideração, Being John Malkovich (1999), quanto, sobretudo, é personagem de grandíssimo destaque na direção de vídeos musicais ao lado de seus amigos e colegas de trabalho Chris Cunningham e Michel Gondry. Feras, não tem outras palavras para descrever. Só pelo gosto de citar alguns, eles já realizaram alguns dos mais famosos vídeos de Chemical Brothers, Bjork, Fatboy Slim, Beastie Boys, Duft Punk, Aphex Twin. 

Bom, dessa vez, Jonze se aventurou em lugares sombrios do entendimento seres humanos/máquinas. O campo de ação do filme, ambientado em um futuro ultra-tecnológico, é o da inteligência artificial (AI) e, tanto o foco quanto o climax, introduzem um conceito fascinante que é o da singularidade tecnológica (Technological Singularity); conceito que já há décadas foi imaginado e explicado por cientistas segundo metodologias de multiplicação seletiva da AI até níveis tão altos que chegariam a ser mais sofisticados que o próprio cérebro humano.

E foi justamente pensando em um futuro desse tipo - que os cientistas imaginam acontecer entre 2030 e 2045 - que Jonze nos faz imaginar como seria a interação com um tipo de AI do gênero. Óbvio, todos ficaríamos deslumbrados; alguns perdidamente apaixonados, como é o caso de Theodor (Joaquin Phoenix) que custa a acreditar no fato dele ter sentimentos por algo que existe só virtualmente...só? O grande questionamento nasce na definição do que é real e o que não é. É qualquer existência condicionada ao "ser" fisicamente? 

Mas, o que me chamou mais a atenção nem foi esse dilema dos homens com a "autenticidade" das AI. O ponto mais crucial, para mim, foi a própria AI - no caso de Her o Sistema Operacional (OS) com a voz magnífica de Scarlett Johansson - questionar sua própria existência: "Eu existo?", "Onde existo?", "O que eu sou?" e, mais importante, "Eu sou real porque meu sistema me programou para acreditar nisso ou eu não sou diferente dos humanos?". A consciência, a sensibilidade, em uma palavra, o que nós chamamos de "alma".

Será que o filme de Spike Jonze é um mero filme de ficção científica? Talvez hoje o seja, mas o saber que AIs assim podem um dia existir é, no mínimo, chocante. Muitos até achariam que o relacionamento entre Theodore e seu OS, Samantha, não poderia de toda forma existir pela falta de verdadeiro contato físico. Mas se fosse um relacionamento de amizade? Por que não? Supondo os devidos avanços que chegariam na singularidade tecnológica, pessoalmente acho que o problema seria mais para as AI do que para nós "homens" (isso se não considerarmos o AL9000, óbvio!!*). Portanto devo dizer que concordo com o epílogo do filme e, acredito, com o ponto de vista de Jonze quando vemos a extinção voluntária dos OSs motivada por essas grandes problemáticas filosóficas ligadas à existência.


Deu para perceber que o "just lesser versions of what I've already felt" é para refletir sobre o contraste com as poderosas novas versões e as incríveis novas sensações da AI?



Pensando, agora, mais um pouco no filme, nós podemos notar que ele conta com uma finíssima fotografia, cheia de luzes naturais intervaladas por luzes artificiais, ambas muito atraentes e cheias de vida. Os cortes são ótimos e as cores bem monocromáticas, sem exagero de informações, como eu gosto! O foco das imagens também, absolutamente concentrado em Phoenix, quase como se não existisse nada em volta dos dois. A trilha sonora é linda, acabei de baixar comprar: abre com uma música de Aphex Twin, "Avril 14th", no piano, que dá para escutar a repetição, e inclui "The Moon Song" de Karen O. que foi amplamente aclamada pelos experts e que seria a música que a OS de Theodore, Samantha, compõe para ele dizendo-lhe que é o lugar onde eles dois existem e podem se encontrar.


Theodore (com Samantha no bolso da camisa) na praia. Fotografia linda com o foco absoluto nos dois. Os demais, desfocados, são só anônimos. 




* AL9000 é o Sistema Central em 2001: A Space Odissey de Kubrick que, raptado por um inusitado impulso humano de controle, resolve tomar ordens pessoalmente e se insubordinar.

sexta-feira, 27 de junho de 2014

"I think my mask of sanity is about to slip"

Conhecemos bem nós mesmos? Todos nós achamos que sim. Mas quem já teve a oportunidade de ficar um pouco sozinho, ou a fatalidade de passar por problemas com a própria psique, sabe bem que não é assim. Estamos longe disso. 

Quando criança, de madrugada morria de medo de ir ao banheiro. Não porque achasse que algum monstro vindo de outro mundo ia me matar ou algum ladrão me raptar. Eu não queria olhar no espelho do banheiro pois tinha medo que ia ver outra pessoa no meu lugar, uma pessoa malvada que fizesse algo de ruim.

Bom! Cresci e carrego ainda fraquezas e dúvidas, como cada um de nós. Mas ainda continuo sendo um mistério para mim.

Esse prólogo não é à toa. Faz doze horas que eu re-assisti American Psycho, que conta com a fantástica interpretação de Christian Bale, e ficou dentro de mim aquela sensação de deságio que nasce de uma problemática clara proposta no film: a prisão interior da nossa natureza humana.

A vida, o trabalho, a rotina, o sistema...tudo que nós vivenciamos cotidianamente forma uma estrutura complexa na qual coabitamos em simbiose com todos os outros. Isso nos afeta de uma forma quase sempre mecânica e, quando percebemos, temos que fazer um grande esforço para analisar o que está à base dessa estrutura. Alguns tendem a esquecer que essa estrutura existe até serem forçado por eventos, naturais ou não, como a morte ou o nascimento de alguém, algum fracasso ou um grande sucesso, certas desilusões ou surpresas inesperadas. Outros, vivem isso de forma tão nítida que impossibilita uma vida "normal", conformada naquela simbiose com o sistema que eu falei.

Patrick Bateman vive uma vida de glórias, com uma noiva rica, um corpo perfeito, uma rotina metódica, um trabalho dos sonhos...tudo para, como ele diz, "fit into it", isto é, se encaixar no sistema. Se ele fugir disso, é o fracasso, a perdição, a marginalidade. Ele tem nojo das pessoas que não trabalham e se glorifica de todas as atenções que ele se sente merecer pelos esforços em manter uma aparência impecável e um emprego de primeira.

Só tem um problema. Ele vive em uma pessoa que não reconhece. Atrás daquela máscara, tem o vazio.


"There is an idea of a Patrick Bateman. Some kind of abstraction. But there is no real me. Only an entity. Something illusory. And though I can hide my cold gaze, and you can shake my hand and feel flesh gripping yours, and maybe you can even sense our lifestyles are probably comparable, I simply am not there."
 Ele, assim, constrói um mundo noturno onde entra em contato violentamente com pessoas a ele subordinadas, ou que ele acha que deveriam assim ser, na vida real. O colega de trabalho, as prostitutas, mulheres superficiais, porteiros, policiais, mendigos...E tem a necessidade de desfrutar dessa aproximação até (conforme confessado no climax) cozinhando e comendo o cérebro de alguns deles.

Muito cedo percebemos que isso não passa de um abisso de irrealidade que seu subconsciente projeta ao anoitecer para que ele respire, por algumas horas, o ar livre, o oxigênio da animalidade humana. Ele precisa se sentir fraco, precisa se sentir humano, precisa muito cometer erros e ser comiserado e ajudado. E ele espera que isso aconteça quando, sem aparente jeito de se safar, pede ajuda a seu advogado. Este o chama à realidade, dizendo-lhe que nada que ele está dizendo aconteceu.

A catarse que Bateman anelava não chega, pois tudo está ainda arrumado para se encaixar no sistema, e ele, triste e desesperado, decide que seu mal-estar precisa contagiar os outros.
"There are no more barriers to cross. All I have in common with the uncontrollable and the insane, the vicious and the evil, all the mayhem I have caused and my utter indifference toward it, I have now surpassed. My pain is constant and sharp and I do not hope for a better world for anyone; in fact, I want my pain to be inflicted on others. I want no one to escape, but even after admitting this there is no catharsis, my punishment continues to elude me and I gain no deeper knowledge of myself; no new knowledge can be extracted from my telling. This confession has meant nothing."



Christian Bale se adapta à personagem e consegue nos mostrar como é a vida de quem não encontra essa catarse. Sua interpretação é ótima, eu diria a melhor que eu já vi do ator. Sobretudo no homicídio de Paul Allen (Jared Leto), quando vemos de forma tragicômica sua interseção entre vida normal - falar de música e vistir um terno Valentino - e o surreal - matar um colega com um machado se protegendo com uma capa de chuva -  e no telefonema ao advogado, quando ele entende o quanto absurdas foram as coisas que ele fez SE transpostas no plano do sistema (i.e. confessando tudo e tentando, assim, a catarse). 

sexta-feira, 20 de junho de 2014

From Russia With Love

Os clássicos. O que seria nossa vida sem eles? 

 Claro que, os que hoje procuramos saudosamente nas nossas estantes em dias de chuva, já foram longas que passaram no cinema ineditamente e que foram até muito criticadas por alguns. Hoje nem conseguimos imaginar como isso podia acontecer, mas os tempos mudam e nós mudamos. 

 O que eu assisti há mais de doze horas é um dos mais clássicos: 007. From Russia with love. Quem já não viu pelo menos uma cena do filme? 

 O enredo é uma sucessão de eventos bem trançados que Ian Flemming construiu anos antes do filme em um romance progenitor dos demais, que também serviram de roteiro para outros filmes da coletânea. 

 A Guerra Fria é o pano de fundo e, nos mesmos dias em que esse filme estava tomando forma, outro grande clássico estava preste a se consagrar na história do cinema: o Dr. Strangelove de Stanley Kubrick. A supremacia de um dos dois blocos era o assunto do dia, sempre. Nos filmes, isso se via, também, de forma às vezes parodizada, às vezes só "embelezada" para aperecer com um charme aventureiro e intrigante. A série 007 foi pioneira nessa última vertente, adicionando toques de mistérios, como é o caso do From Russia with love, cujo climax se passa interamente nos vagões do famigerado Orient Express, entre os fantasmas de Agatha Christie.

 Lembrei muito de Inglorious Basterds do Tarantino quando revi a cena do vagão restaurante. Nos fotogramas, Grent, desfarçado de agente secreto britânico que supostamente ajudaria Bond, pede ao garçom peixe com vinho tinto, coisa que chama a atenção de Bond (e a nossa) por ser um tanto ousada. Vemos, pois, na cena seguinte, James Bond desmascarando o desfarce, ainda comentando "peixe com vinho tinto... deveria ter desconfiado que era russo!". No filme (e não somente nesse), os russos são retratados como brutos e sem sofisticação, em completo contraste com o gosto "fino" inglês. Mas, por que lembrei de Tarantino? Lembram aquela cena de Inglorious Basterds na taberna onde os alemães estão bebendo e alguns americanos querendo se infiltrar? O americano faz sinal de "drei Bier" à la ocidental, mas na Alemanha, como em outros lugares, o 3 se faz com dedos agrupados de forma diferente. Isso faz com que o alemão (James Bond do caso) desvende a tentativa de intrusão. Será que Tarantino é um dos fans de 007? 

 Pois bem. O charme do filme, inútil dizer, é o agente especial 007 que, com seu duplo "0" indicando a permissão para matar, carrega as fraquezas de um galante que mostra sempre uma forte habilidade e intuição que o salvam nas situações mais perigosas. Isso, óbvio, com o auxílio de ferramentas que nós já sonhamos em ter nas nossas gavetas. Em From Russia with love aparecem pela primeira vez: uma maleta "quente", o telefone (!) na Bentley do agente, uma câmera/gravador e um aparelho para detectar escutas no quarto de hotel; que vinha a ser, praticamente, a marca registrada do 007 e objeto de comentários do público: "quando vai usar isso?", "ele já usou?", "ah, agora que ele vai usar!". 

 Um dos detalhes, que também acompanha todos os 007 a seguir, é a sequência de abertura do filme com o tema da trilha sonora e cenas de mulheres (intrigando/inganando, não se sabe ainda), do próprio 007 e de armas. O todo é editado com sombras, às vezes com cortes inclinados e invertidos e mostrando só detalhes. Essa fantástica ouverture, que perpassa todas as épocas do 007 e, portanto, reflete cada período em modas da edição e do figurino, sempre faz um apanhado geral da história e uma pequena prévia do climax, sempre involvendo a bond girl da vez, ou uma mulher que se pareça muito com esta, para denotar sua personalidade misteriosa. Até o próprio Bond nem sempre aparece com seu ator da vez, pois ele próprio passa por momentos de perdição e dúvidas pessoais. 

 Em From Russia with love, ainda, vemos Sean Connery em sua segunda aparição como 007, o que viria a se consagrar como um dos sex symbols mais conceituados, para algumas, e como ídolo e herói bon vivant, para outros. Isso vem, um pouco, mudando com a “temporada“ de Roger Moore que faz um papel de agente um pouco mais atrapalhado. Voltará com Pierce Brosnan para ser novamente revisitado pelo nosso contemporâneo Daniel Craig. 

 O mais importante é que, mesmo com o passar dos anos, os mistérios, as reviravoltas, a interação das personagens, os epílogos e o próprio James Bond continuam nos entusiasmando de forma quase inexplicável, mesmo a quem conhece as cenas de cor.


Tatiana Romanova, a bond girl russa

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Estou cantando e dançando na chuva!

Fiquei muito feliz quando o Cine Joia de Copacabana divulgou que teria projetado um dos primeiros musicais que eu vi na vida, na sexta-feira passada. E que, além de tudo, o teria feito de forma franca.

Singin'in the Rain é um show de diversão e uma escola sem par para os que hoje almejam se tornar grandes estrelas da Broadway. Pode afirmar-se sem perder tempo que esse clássico foi pioneiro na escolha de estilo e ditou padrões de qualidade artística inequivocáveis. Todas lá são estrelas brilhando, mas, quem dirigiu, inventou e preparou as coreografias e dançou nos emocionando, Gene Kelly, se destaca de forma louvável e nos diverte genuinamente. Lê-se em diversas fontes que o ator/diretor/dançarino estava com 39.4° de febre quando, chutando água para todos os lados, ficava imortalizado na história do cinema performando o tema singin'in the rain.

Nesse musical de 1952, outro astro, Donald O'Connor, deixa todos de queixo caídos ao interpretar make'em laugh, pulando, se machucando e fazendo graças digno de um Chaplin colorido. Ele, junto com Gene Kelly e com Debbie Reynolds, formam um trio hilário e extremamente talentoso. O gênero de interpretação dos três, o desenvolvimento da história, o figurino e o alternar específico de músicas e falas, preparou o terreno para todos os musicais seguintes, até a década de '60/'70 (Mary Poppins, Bye Bye Birdie, Hello Dolly, Funny Girl,...) e delineou as diretrizes para os musicais da Broadway, até os que estão sendo montados nos nossos dias.

Cartaz de 1952

Conforme o próprio poster diz, é um "tesouro musical". O virtuosismo do trio dançante e cantante rege essa obra prima como três pilares sólidos. São 103 minutos de filme só rindo e ritmando com o pé no chão sem parar para acompanhar as músicas já não mais inéditas, depois de 60 anos de sucessos e homenagens. Sempre recomendei assistir esse clássico e, depois de anos e anos que eu não via, re-entendi porque aquele meu pedido tão automático ao amigo da vez "tem que assistir, não pode deixar de assistir!!" fosse tão razoável!